Castigo corporal de crianças em Moçambique

ÚLTIMA ATUALIZAÇÃO : agosto de 2017

* Moçambique está comprometido em reformar suas leis para proibir o castigo corporal em todos os ambientes. *

Compromisso de Moçambique de proibir a punição corporal

Em 2016, o Governo manifestou o seu empenho em proibir todas as formas de punição corporal de crianças ao aceitar a recomendação para tal efeito realizada aquando da Revisão Periódica Universal de Moçambique.

 

Resumo da reforma jurídica necessária para alcançar a proibição plena

A proibição ainda está por alcançar na família, em estabelecimentos de cuidados alternativos, nas creches e nas escolas.

A Lei para a Promoção e a Proteção dos Direitos das Crianças 2008 define o conceito de “disciplina justificável”, que, na ausência da proibição explícita de toda a punição corporal, estabelece uma defesa legal para o recurso a punição física na educação infantil. Esta disposição deve ser revogada/alterada de modo a que a legislação estabeleça claramente que nenhum tipo de punição corporal, mesmo que leve seja aceitável ou legal. A proibição de toda a punição corporal e de outros tratamentos desumanos ou degradantes deve ser promulgada, incluindo pelos pais e todos os adultos com autoridade sobre as crianças.

Estabelecimentos de cuidados alternativos – A proibição de punição corporal deve ser promulgada na legislação aplicável a todos os estabelecimentos de cuidados alternativos (famílias de acolhimento, instituições, locais de segurança, cuidados de emergência, etc.).

Creches – A punição corporal deve ser proibida em todos os estabelecimentos de cuidados infantis, seja para crianças pequenas (creches, infantários, pré-escolas, centros de família, etc.), seja para as mais crescidas (ATL, centros de estudo, centros de cuidados infantis, etc.).

Escolas – A política do Governo contra o recurso a punição corporal nas escolas deve ser confirmada na legislação que a proíbe claramente em todos os contextos educativos, públicos e privados, a todos os níveis.

Legalidade atual da punição corporal

Casa

A punição corporal é legal na família.  O artigo 7.º n.º 7 da Lei para a Promoção e a Proteção dos Direitos das Crianças 2008 estabelece que "nenhuma criança deve ser sujeita a tratamento negligente, discriminatório, violento e cruel ou ser sujeita a qualquer forma de exploração ou opressão" e estabelece que o abuso infantil inclui "agressão ou outra lesão deliberada" (tradução não oficial). Contudo, a Lei não proíbe toda a punição corporal, e o 17.º, n.º 3 define o conceito de disciplina justificável: “A criança tem o direito de ser disciplinada de acordo com a sua idade, estado físico e mental, e nenhuma medida disciplinar é justificada se, devido à sua tenra idade ou outra razão, a criança não for capaz de compreender o objetivo da medida disciplinar.”

O artigo 40.º, n.º 1 da Constituição de 2004 estabelece que “todos os cidadãos devem ter direito à vida e à integridade física e moral e não devem ser sujeitos a tortura ou a tratamento cruel ou desumano”, mas tal não é interpretado como protegendo as crianças de todas as formas de punição corporal. Similarmente, as disposições contra a violência e o abuso da Lei sobre a Organização da Jurisdição de Menores n.º 8/2008, a Lei da Família de 2004 e a Lei Contra a Violência Doméstica n.º 29/2009 não são interpretadas como proibindo toda a punição do corporal na educação infantil. O novo Código Penal, que entrou em vigor em 1 de julho de 2015, penaliza os crimes contra a integridade física (art. 170ff) mas apenas quando envolve lesão corporal; pune a violência doméstica (art. 245ff), mas não inclui todos os tipos de punição corporal de crianças. O Plano Nacional de Ação para a Criança Década 2013-2019 (PNAC II) não faz qualquer referência à punição corporal.

A Constituição está a ser revista.

Em 2016, o Governo expressou o seu empenho em proibir todas as formas de punição corporal de crianças em todos os contextos ao aceitar as recomendações para tal efeito que foram feitas aquando da Revisão Periódica Universal de Moçambique.[1]

 

Contextos de cuidados alternativos

A punição corporal é lícita em estabelecimentos de cuidados alternativos, assim como aos pais ao abrigo da disposição "disciplina justificável" no artigo 17.º da Lei para a Promoção e a Proteção dos Direitos das Crianças 2008" (ver "Página inicial" acima).

 

Creches

A punição corporal é lícita nos cuidados de crianças pequenas e nas creches para crianças mais velhas ao abrigo da disposição "disciplina justificável" no artigo 17.º da Lei para a Promoção e a Proteção dos Direitos das Crianças 2008" (ver "Página inicial" acima).

 

Escolas

As orientações do Governo desaconselham o recurso a punição corporal nas escolhas, mas não existe uma proibição explícita na lei. O artigo 34.º n.º 1 da Lei para a Promoção e a Proteção dos Direitos das Crianças 2008 estabelece que a criança tem direito à educação, incluindo o "direito a ser respeitado pelos professores de forma a assegurar a dignidade humana da criança" (tradução não oficial). A Lei também estabelece a obrigação da direção escolar de comunicar quaisquer maus tratamentos dos estudantes (art. 37.º n.º 1), mas não proíbe explicitamente a punição corporal. A Lei sobre o Sistema de Educação Nacional 1983 parece ser omissa sobre a questão (informação não confirmada). A Lei n.º 2001-054 sobre Educação Primária estabelece a educação obrigatória para crianças entre os 6 e os 14 anos: não proíbe a punição corporal.

 

Instituições penais

A punição corporal é explicitamente proibida como medida disciplinar em instituições penais no artigo 64.º n.º 4 da Lei para a Promoção e a Proteção dos Direitos das Crianças 2008 (tradução não oficial): “É rigorosamente proibido o recurso a métodos disciplinares que constituam tratamento cruel, desumano ou degradante, incluindo punição corporal, colocação numa cela escura, encarceramento ou na solitária, redução da dieta….” Outra legislação aplicável inclui a Lei n.º  3/2013 de 16 de janeiro, que estabelece o Serviço Penitenciário Nacional (SERNAP) e os Decretos n.º 63 e 64 de 6 de dezembro de 2013, que aprova os Estatutos Orgânicos SERNAP e os Estatutos do Pessoal SERNAP: ainda temos de ver os textos integrais destas leis.

 

Sentença por crime

A punição corporal é ilegal enquanto pena de crime nos termos da Lei de Abolição da Pena de Açoitamento de 1989: o artigo 1.º revogou a Lei n.º  5/1983 que havia introduzido o açoitamento como pena judicial, o artigo 2.º revogou todas as penas de açoitamento que não tivessem sido executadas no momento da entrada em vigor da lei. A Constituição protege “todos os cidadão” da tortura e de tratamento cruel ou desumano (art. 40.º) e não existe disposição relativa à punição corporal enquanto pena no tribunais nos termos da Lei para a Promoção e a Proteção dos Direitos das Crianças 2008.

 

[1] 12 de abril de 2016, A/HRC/32/6, Relatório do grupo de trabalho, para. 128(102)

Revisão Periódica Universal do registo dos Direitos Humanos em Moçambique

Moçambique foi avaliado no primeiro ciclo do processo de Revisão Periódica Universal en 2011 (10.ª sessão). Não foram feitas recomendações sobre a punição corporal de crianças.

A avaliação do segundo ciclo realizou-se em 2016 (24.ª sessão). As seguintes recomendações foram apresentadas e aceites pelo Governo:[1]

“Adotar estratégias para combater práticas danosas, como escravidão por dívida de crianças e punição corporal (Turquia);

“Proibir a punição corporal de crianças em todos os contextos (Eslovénia)”

 

[1] 12 de abril de 2016, A/HRC/32/6, Relatório do grupo de trabalho, para. 128(101) e 128(102)

Recomendações dos órgãos de tratados sobre Direitos humanos

Comité dos Direitos da Criança

(4 de novembro de 2009, CRC/C/MOZ/CO/2, Conclusões sobre o segundo relatório, parag. 8, 47, 48 e 75)

“O Comité remete o Estado signatário para o seu Comentário geral n.º 5 (2003) sobre medidas gerais relativas à implementação da Convenção dos Direitos das Crianças e recomenda que tome todas as medidas necessárias para abordar as recomendações das conclusões do relatório inicial que ainda não foram implementada ou suficientemente implementadas, incluindo as relacionadas com a alocação de recursos, crianças com deficiência, crianças que vivem na rua, trabalho infantil, punição corporal, e abuso e negligência infantil….

“O Comité está preocupado por a punição corporal permanecer legal em casa e nas escolas e ser, com frequência, considerada como a única forma de disciplinar as crianças. O Comité está também preocupado por a Lei da Proteção dos Direitos das Crianças não proibir explicitamente a punição corporal em casa e nas escolas. Além disso, o Comité manifesta a sua inquietação por, apesar dos regulamentos internos no Ministério da Educação que proíbem a punição corporal, esta continuar a ser aplicada a crianças por professoras e pais no Estado signatário.

“Recordando a sua recomendação anterior (CRC/C/15/Ad.172, parag. 39 (b)), o Comité chama a atenção do Estado signatário para o seu Comentário geral n.º 8 (2006) sobre o direito da criança à proteção contra punição corporal e outras formas de punição cruéis e degradantes, de acordo com o qual a eliminação da punição violenta e humilhante de crianças é uma obrigação imediata e absoluta dos Estados signatários. Por conseguinte, o Comité insta o Estado signatário:

a) a proibir explicitamente por lei a punição corporal na família, nas escolas e em instituições e a assegurar que essas leis são implementadas de forma eficaz e que os processos judiciais são sistematicamente iniciados contra os responsáveis pelos maus-tratos de crianças;

b) a realizar um estudo abrangente para avaliar as causas, natureza e extensão da punição corporal no Estado signatário; e

c) a introduzir a educação pública, campanhas de sensibilização e de mobilização social sobre os efeitos negativos da punição corporal com vista a mudar a atitude geral relativamente a esta prática e a promover valores positivos, não violentos, valores e formas participativos de criação e educação da criança.

“O Comité salienta com satisfação a criação do Instituto Nacional de Apoio a Refugiados por Decreto n.º 51/2003 de 24 de dezembro de 2003 com o objetivo, nomeadamente, de assegurar que as crianças refugiadas usufruem dos seus direitos à educação, cuidados de saúde, segurança social e proteção, assim como da criação de uma escola primária e um centro de saúde no centro de refugiados de Marratane. No entanto, o Comité está preocupado com o elevado nível de tensão étnica e violência entre crianças no campo e na escola, onde os professores aplicam punições corporais às crianças….”

 

Comité dos Direitos da Criança

(7 de fevereiro de 2002, CRC/C/15/Add.172, Conclusões sobre o relatório inicial, para. 32.° e 39.°)

"O Comité está preocupado:

a) com atos de violência e abuso, incluindo abuso sexual, perpetrados contra crianças em escolas e instituições alternativas de acompanhamento e por membros do público ou da força policial nas ruas, assim como com o facto de os rapazes não serem tão bem protegidos contra crimes sexuais quanto as raparigas;

b) com a prática generalizada da punição corporal em casa, nas escolas e outras instituições públicas, nomeadamente prisões, assim como em contextos alternativos de acompanhamento...

O Comité recomenda que o Estado signatário:

a) tome medidas para abordar os atos de violência e abuso, incluindo abuso sexual, perpetrados contra crianças na família, nas escolas e nas ruas através, entre outros, do recurso a campanhas de formação e informação sobre o impacto da violência nas crianças, os direitos da criança e a instauração de processos judiciais contra os autores de tais atos;

b) tome medidas para terminar com a prática de punição corporal em casa, nas escolas e em todos os outros contextos, incluindo através de medidas legislativas e administrativas, assim como de iniciativas de educação pública com vista a promover formas positivas, participativas e não violentas de disciplina como alternativa à punição corporal;

c) envidar todos os esforços para disponibilizar tratamento e reabilitação às vítimas de violência e abuso..."

 

Comité Contra a Tortura

(10 de dezembro de 2013, CAT/C/MOZ/CO/1, Conclusões do relatório inicial, para. 25.° e 27.°)

“… "O Comité está também preocupado com os relatórios sobre a punição corporal (bater) infligidos por algumas autoridades tradicionais. Lamenta, além disso, a ausência de informação sobre as ações tomadas para assegurar que, em Moçambique, a lei consuetudinária não é incompatível com as obrigações do Estado signatário ao abrigo da Convenção (art. 16.°).

O Estado signatário deve:

a) Intensificar os seus esforços para prevenir e combater práticas tradicionais prejudiciais, em particular nas áreas rurais, e assegurar que tais atos são investigados e os alegados autores julgados e, se condenados, punidos com sanções apropriadas;

b) assegurar às vítimas serviços jurídicos, médicos, psicológicos e de reabilitação, assim como indemnização, e criar as condições para a apresentação de denúncias sem receio de represálias; 

c) assegurar aos juízes, procuradores públicos, funcionários responsáveis pela aplicação da lei e autoridades tradicionais formação sobre a aplicação rigorosa da legislação relevante, criminalizando as práticas tradicionais prejudiciais e outras formas de violência contra mulheres e crianças.

Em geral, o Estado signatário deve assegurar que as suas leis e práticas consuetudinárias sejam compatíveis com as obrigações em matéria de direitos humanos, em especial, os abrangidos pela Convenção. No seu próximo relatório periódico, o Estado signatário deve fornecer informação sobre a hierarquia entre as práticas tradicionais e a legislação codificada, em especial no que se refere a formas de discriminação de mulheres e crianças.

"Apesar de reconhecer que a punição corporal foi abolida enquanto punição de um crime e é proibida em instituições penais, o Comité está preocupado por não existir uma proibição explícita na família, nas escolas e em todos os estabelecimentos de cuidados (art. 16.º).

O Comité recomenda que o Estado signatário proíba a punição corporal em todos os contextos, realize campanhas de sensibilização pública sobre os seus efeitos negativos e promova formas de disciplina não violentas como alternativas à punição corporal."

 

Comité Africano de Peritos nos Direitos e Bem-Estar da Criança

([Dezembro de 2014], Conclusões do relatório inicial, para. 29.º)

"O Comité reconhece a proibição da punição corporal enquanto castigo e recomenda que o Estado signatário proíba explicitamente todas as formas de punição corporal, em todos os contextos, incluindo nas escolas, na família e nos estabelecimentos de cuidados alternativos. O Estado signatário deve assegurar o respeito do direito da criança de ser protegido contra a violência. O Comité também solicita que o Estado signatário fomente uma disciplina positiva e apoie as famílias através da sensibilização e da formação daqueles que trabalham para e com crianças, como professores e cuidadores.”

Pesquisa de prevalência/de atitude nos últimos dez anos

Um estudo que envolveu mais de 1.000 raparigas no Gana, Quénia e Moçambique analisou o impacto do projeto ActionAid 2008-2013 “Parar a Violência Contra Raparigas na Escola”. O projeto incluiu a sensibilização e a criação de grupos de pressão para a adoção e a implementação de medidas jurídicas e políticas que assegurem que a educação seja livre de punição corporal nos três países. O estudo concluiu que, em 2013, o recurso a algumas formas de punição corporal tinha diminuído desde o estudo de referência realizado em 2009. Em 2009, em Moçambique, 52% das raparigas tinham sido açoitadas nos últimos 12 meses; em 2013, este número tinha descido para 29%. As mais recentes experiências das raparigas de punição corporal ocorreram, em geral, na escola. O estudo recomenda a proibição da punição corporal nas escolas e medidas para implementar a proibição.

(ActionAid International (2013), Parar a Violência Contra Raparigas na Escola: Uma análise entre países no Gana, Quénia e Moçambique, Joanesburgo: ActionAid)

Em 2009, mais de 2.600 crianças com idades entre os 6 e os 18 anos participaram num estudo, ao passo que 168 crianças realizaram desenhos e falaram sobre a última vez em que foram castigadas na família ou na escola. Uma em cada três crianças tinha sido açoitada no seio familiar com a mão nas duas últimas semanas, 37% com um objeto. No caso de crianças entre os 6 e os 8 anos a probabilidade de terem sido açoitadas por crianças mais velhas é maior, e crianças de famílias de baixos rendimentos também têm maior probablidade de terem sido açoitadas por crianças de famílias de rendimentos superiores. Cerca de uma em cada três crianças tinha sido açoitada com a mão na escola nas duas últimas semanas e 40% com um objeto.

(Clacherty, G. et al (2009), Children’s Experiences of Punishment in Mozambique: A Qualitative and Quantitative Survey, Pretoria: Save the Children Sweden)

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